Ficções da quarentena e da amizade

Por Sérgio Arruda de Moura
Originalmente publicado em Folha1

A peste já caminhava solta sem saber que já era uma pandemia em 1348, com fim marcado para daí a cinco anos, quando o tédio invadiu os corações de tão nobres criaturas, 10 ao todo, sendo três varões e sete donzelas. Sem demora arquitetaram um plano para dar uma volta naquela madorna improdutiva. Já não trabalhavam e ainda tinham de ficar sem fazer nada? Foi aí que tiveram a ideia de se encerrarem em uma vila isolada e concluir a estada com uma maratona de histórias a ser cumprida em dez dias! A ideia fora de Giovanni, querendo com isso modernizar a literatura, que já estava caducando de religiosices e latinices. Afinal de contas, Florença merecia.
Toca para o século XXI, ano de 2020. Em algum lugar do ciberespaço mediado por um aplicativo, alguns amigos, sentindo falta do aconchego, fundaram um grupo de WhatsApp sem imaginar que estavam fundando uma espécie de Sociedade do Betume, para garantir e regar o chão da literatura além dos limites da rua Paulo, que fosse além de Campos dos Goytacazes, para o mundo e para a glória. Afinal de contas, Campos merece.
O resultado foi uma espécie de Mafuá do Malungo, mas coletivo, em que não só o Bandeira escreveria para revisitar os amigos em poemas curtos, rimados, medidos, cheios de amizade e admiração por gente como Drummond, Murilo Mendes, Vinícius, Rosa, até Juiz de Fora, além de Verlaine, Keats e ele próprio. Bandeira também havia vivido a experiência de se isolar (não junto com o mundo todo). Foi quando ruminou sua poesia, esperando a morte de uma pandemia só dele, morte que chegou atrasadíssima para o tuberculoso recluso em eterno compasso de espera da indesejada das gentes até a provecta idade de oitenta e poucos anos, com ele fazendo cinza das horas.
As biografias de escritores estão repletas de causos de grandes nomes que só produzem isolados. Os americanos procuram cabanas na floresta; franceses, castelos; Sartre, o Café de Flore; Clarice, os guardanapos e o verso dos talões de cheque. Um grupo de campistas, mas não apenas, procurou os aplicativos, que são formas atualizadas, com sucesso, de isolamento, e acabaram num e-book, cujo título, “Revelações da Quarentena: Uma brincadeira literária coletivo com textos da pandemia”, encontra-se agora disponível na rede.
Esses poetas-escritores, jornalistas, professores, artistas da cena e fotógrafos queriam (e querem) da amizade mais do que ela pode dar, a entrelinha do que não se disse ou se supôs não ter dito, ou não se pôde dizer a toa, ou que foi esquecido de dizer, ou que foi dito e agora se repete, e que só pode ser feito com a ajuda luxuosa da ficção, acumpliciada.
Foi aí que Adriano Moura ressuscitou duas personagens do teatro para dizer a Adriana Medeiros que ela prega peças — e que é só chamá-la que ela sobe no palco. Ela por sua vez contou horrores da intimidade e solidão dele na Quarentena — a sorte é que tudo era ficção. Carlos Alencar, por sua vez, ressuscita Hamlet, Horácio e Wladimir Herzog e constrói uma cena em que Vitor Menezes entra como seu legítimo herdeiro.
Na vida prática, não há nada que se pareça mais com a ficção do que a própria vida prática, mas essa não vale. Então vou ficar com o sonho que Vitor Menezes teve e que é recontado por João Paulo Arruda, o campeão, dentre eles, da narrativa fantástica, incluindo suas frases, que derrubariam a teoria gerativista de Noam Chomsky.
As referências são inúmeras, sinal de que a literatura é uma gramática semântica, sendo um escritor, um poeta e um romance espécies de semantemas com os quais se fazem outros textos, provando que um escritor se faz sempre deglutindo outro. Todos os 24 autores (ou quase), de alguma forma, disseram nos seus contos quem é que estava comendo — simbolicamente, peraí.
Enfim, tudo era apenas uma brincadeira… e terminou assim mesmo, como resultado de uma brincadeira, mas uma brincadeira literária. Literatura é isso mesmo, um campo tão vasto que pode muito bem incorporar mais esse item: brincadeira.
Os 46 contos desorganizados foram, enfim, organizados por Wellington Cordeiro e Jorge Rocha, com projeto gráfico, ficha catalográfica e o escambau, posfácio, prefácio, de gente que, se já não eram amigos, tornaram-se, não necessariamente de infância, mas de faculdade, de boteco, de batente de trabalho, ou de Quarentena, em cenários campistas. Fiquei achando que o correlato em Campos do La Rotonde e do Café de Flore em Paris é Ao Gato Preto, bar-cenário. E o Aurélio e o Houaiss devem estar disputando já os verbetes da Cabruncopédia, com neologismos que estavam fazendo falta na língua portuguesa e que vêm no Revelações como bônus.
Estão de parabéns, além dos já citados, Alexandro Florentino, Alfredo Soares, Álvaro Marcos, Carlos Augusto Souto de Alencar, Cássio Peixoto, Cristiano Pluhar, Elda Moura, Felipe Sales, Gustavo Soffiati, Lionel Mota, Marcelle Louback, Márcio de Aquino, Maurício Xexéo, Marlúcio Arruda, Rodrigo Florêncio, Ronaldo Junior, Wesley Barbosa Machado e Zé Henrique Meireles. A eles toda a minha devoção por firmarem pé na cena cultural em tempos de penúria.

REVELAÇÕES: O E-BOOK

Neste período de isolamento social, por conta da pandemia de COVID-19, um grupo de amigos resolveu se juntar numa brincadeira literária que rendeu um belo fruto, tendo como resultado, um e-book recheado de textos em referência ao que estamos passando neste momento conturbado.

O lançamento será nesta quinta-feira (17), às 20h, pela minha página do facebook, num bate-papo com alguns dos autores do “Revelações da Quarentena”.

Convidamos a todos para conferir como foi fomentar o ócio criativo para se chegar a esse trabalho.

SENHOR DO TEMPO II – O POEMA PERDIDO

De: Ronaldo Junior
Para: Maurício Xexéo

117589080_157383199291826_5862028233747817683_nAs medidas de distanciamento social decorrentes da pandemia de COVID-19 mexeram com o instinto curioso de Maurício Xexéo. Sempre aficionado por colecionar fatos históricos, dados biográficos e livros, ele passou a dedicar sua quarentena ao minucioso estudo de personalidades nascidas em Campos e região.
Passava horas do dia lendo e tomando notas sobre Nilo Peçanha, Múcio da Paixão, José Cândido de Carvalho, Teixeira de Melo, José do Patrocínio e tantos outros que representam a história de Campos, figurando em nomes de ruas e na lembrança.
O caso mais curioso, porém, começou quando Xexéo se pôs a tomar notas sobre a vida do poeta fidelense Antônio Roberto Fernandes com uma lembrança quase esquecida na memória: uma tarde passada no Palácio da Cultura, na companhia do poeta.
Na ocasião, Antônio rascunhara versos em um pedaço de papel e lhe entregara, devidamente assinado, por ocasião do seu aniversário. Aqueles eram alguns dos mais bonitos versos que Xexéo já lera, marcantes não apenas pela data, mas pela profundidade das palavras.Continuar lendo “SENHOR DO TEMPO II – O POEMA PERDIDO”

O ESTRANHO SEM NOME

De: Gustavo Soffiati
Para: Jorge Rocha

117355441_157298309300315_646474166650687828_oSeria um sábado qualquer da quarentena. Porque qualquer dia era sábado ou qualquer outro dia. Seria, não fosse véspera de aniversário de Márcio de Aquino. Ele esperava por aquele dia não como pelos aniversários anteriores. Não apenas porque havia se perdido entre sábados e outros dias, mas não naquele, não só por ser véspera de seu aniversário. Mas porque no dia seguinte, o do seu aniversário, parte da adaptação de seu romance Chicletes e prazer passaria por uma leitura dramática na Santa Paciência Casa Criativa.
A ideia era fazer um teste para transformar o romance em filme, projeto que chegou a ser aventado pouco após a publicação da obra. Aproveitando o período de confinamento, Jorge Rocha investiu-se da função de roteirista. Um mês antes daquele 8 de agosto havia concluído o trabalho, que logo interessou ao diretor de teatro Fernando Rossi, que impôs apenas duas condições para montá-la: incluir no elenco um ator novato, atual garoto alguma coisa de alguma coluna social de algum jornal de Campos e usar alguma música de Caetano Veloso. Jorge não gostou muito das condições, sobretudo, da segunda. Mas acabou cedendo.Continuar lendo “O ESTRANHO SEM NOME”

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